A
LEI DE
ARBITRAGEM ANALISADA À LUZ DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO
João
Roberto E. Piza Fontes/Fábio da Costa Azevedo
SUMÁRIO:
1. Introdução do tema; - 2. A eficácia normativa dos princípios gerais do
direito; - 3. A natureza jurídica da arbitragem e as insuperáveis afrontas à
Lex Superior; - 4. A declaração incidenter tantum da inconstitucionalidade da
Lei; - 5. Reflexão: das inovações trazidas ao risco do "Darwinismo
Social"; - 6. Bibliografia.
1. Introdução do tema
Destituídos do intuito de ensejar um debate ideológico sobre o tema, mas
apenas e tão somente para não se restringir o objeto da ciência do Direito ao
estudo das normas com independência das realidade social, política, econômica
e cultural, cabe-nos considerar que a promulgada Lei de Arbitragem (lei n.º
9.307/96), há anos reivindicada pela comunidade empresarial, nacional e
internacional, visava suprir a deficiência do Brasil em relação ao direito
estrangeiro no que diz respeito ao disciplinamento da arbitragem, e pretendia
aproximar-nos das práticas internacionais do comércio.
Assim, no Brasil, diante de um novo contexto, este exsurgido com os fenômenos
da "globalização da economia" e da formação dos "blocos econômicos"
(União Européia, Nafta, Mercosul, etc.), e sob orquestrada pressão da máquina
financeira e econômica mundial, notou-se sensível empenho das multinacionais e
grandes empresas para modificar-se a legislação brasileira, sendo que somente
na última década foram apresentados três anteprojetos no intuito de aperfeiçoar
o instituto da arbitragem.
Desta forma, salienta-se que em curtíssimo espaço de tempo, a economia mundial
expandiu-se intensamente, daí resultando desde a unificação de tarifas
alfandegárias e tributos internos, até a ocorrência de processos de fusão
entre empresas que sempre estiveram em regime de concorrência; e repita-se,
tudo isso em razão da radical transformação a que fomos submetidos para
ordenar e adequar os, embora recentes, graves efeitos causados pelos fenômenos
supra referidos às necessidades mais elementares de todo o setor social.
Nesta esteira de raciocínio, é inegável que vivemos hoje sob a égide do
pensamento neoliberal e da globalização, fenômenos estes que em muito
influenciaram para a elaboração e positivação de nossa atual Lei de
Arbitragem.
Isto porque, conclui-se ser o liberalismo uma concepção individualista da
sociedade, baseada na existência de um Estado Mínimo, assim como também o são
o sistema de mercado e nossa atual Lei de Arbitragem, que têm na sua estrutura
a liberdade individual e a mínima ingerência estatal como suas regras
matrizes.
Desta feita, demonstrado o estreito enlace ideológico da arbitragem aos dogmas
do liberalismo, ou neoliberalismo, cumpre-nos examinar as implicações
decorrentes de sua aplicação, ao setor da sociedade a quem é confiada a
tutela dos direitos subjetivos dos cidadãos, e o dever de assegurar a
efetividade dos direitos e garantias fundamentais explicitados abstratamente em
nossa Constituição Federal.
Encontramos em brilhante artigo sobre a Lei de Arbitragem, assinado pelo
Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, José
de Albuquerque Rocha, a seguinte preocupação no tocante aos moldes como
concebida a lei ora em comento: "Em sociedades onde as diferenças sociais
e econômicas são menores, como nos países do chamado primeiro mundo, em que
as classes populares, desde o século passado, organizaram-se e lutam desde então,
tenazmente, para diminuir essas desigualdades, a arbitragem pode funcionar com
aceitável legitimidade. No entanto, em países dilacerados por violentos
contrastes econômicos, sociais e culturais, a aplicação irrestrita da
arbitragem, tal como delineada na lei brasileira, corre sério risco de
transformar-se em mais um instrumento de aniquilamento dos direitos dos mais
fracos pelos mais fortes, ou no retorno puro e simples ao regime da autotutela.
Em poucas palavras, a lei de arbitragem, possivelmente, a mais liberal entre os
países de nosso contexto jurídico-cultural, está sujeita a converter-se em
mais uma ferramenta de conservação de uma das maiores concentrações de
riqueza do mundo" (Lei de arbitragem: reflexões críticas).
Assim, a lei da arbitragem tal como posta no ordenamento jurídico, traz a colação
vícios relacionados à violação de princípios estruturantes de toda a ordem
constitucional, como é o caso dos princípios do Estado Democrático de
Direito, da divisão ou separação dos poderes, da inafastabilidade da jurisdição,
do juízo legal e do devido processo legal.
2. A efetividade normativa dos Princípios Gerais de Direito
A abordagem do presente estudo, adianta-se, pautar-se-á primordialmente pela
interpretação e aplicação dos postulados de efetividade normativa dos princípios
gerais de direito, bem como sua validade e eficácia frente ao nosso ordenamento
jurídico vigente, tudo isso ligado à análise da atual lei de arbitragem (Lei
9.307/96) frente à adequada exegese dos referidos princípios gerais
positivados em nossa Constituição.
Prima facie, a validade das normas constitucionais adviria exclusivamente de seu
caráter formal, ou seja, uma vez positivadas, através de sua inserção no
texto jurídico fundamental de um Estado, adquirem validade, ou capacidade de
integrar o ordenamento jurídico e produzir efeitos.
O conceito, entretanto, não se mostra suficiente diante da abordagem sistêmica
da Constituição que induz a uma coerência lógica intrínseca que a
diferencia no dizer de Bobbio, de um mero amontoado de normas fixadoras de
condutas e vedações. Ainda, segundo o festejado Jurista italiano, os princípios
gerais de direito seriam assim como traves mestras do sistema a sustentar, através
de sua efetividade normativa, a concretude formal e lógica do arcabouço jurídico
de um determinado Estado. Neste ponto, mister se faz a fixação do conceito de
que os princípios gerais de direito teriam validade para toda a humanidade,
mesmo que não positivados. A isso é que chamamos de efetividade normativa dos
princípios gerais de direito. Exemplificando: todo homem tem direito a vida.
Este princípio geral de direito tem validade universal ou supranacional, esteja
ele positivado na Constituição de um determinado Estado ou não, uma vez que,
universalmente aceito.
Compartilhando de tal entendimento, o brilhante Paulo Bonavides, ao citar F. de
Clemente, assevera que: "Assim como quem nasce tem vida física, esteja ou
não inscrito no Registro Civil, também os princípios gozam de vida própria e
valor substantivo pelo mero fato de serem princípios, figurem ou não nos Códigos"
(in, curso de direito constitucional, 8ª edição, Malheiros Editora, pág.
229).
Portanto, o que legitima a força coercitiva da norma jurídica é sua adequação
aos princípios gerais de direito e não como antanho já se pensou, a mera
expressão positivada da vontade do "Príncipe". Isto posto, para que
o arcabouço jurídico de um Estado seja eficaz, é necessário que coexistam no
mesmo, a legalidade com a legitimidade, a qual se dá pela adequação aos princípios
gerais de direito. Particularmente no nosso caso, os Princípios do Estado
Democrático de Direito e da República.
No mesmo sentido, uma vez positivados ou constitucionalizados, os princípios
gerais de direito induzem a adequação da totalidade da norma fundamental à
coerência lógica neles instituída, mais ainda, por evidente, a legislação
infra-constitucional, formando-se, portanto, um arcabouço jurídico dotado de
uma lógica sistêmica interna em que coexistem legalidade e legitimidade, e que
portanto o torna eficaz.
Mas isto, por si só, por evidente, não encerra a questão, uma vez que a
complexidade do mundo moderno impõe feliz ou infelizmente a proliferação e
complexidade de normas jurídicas, pelo menos, nos países como o nosso, em que
vigora o sistema de civil law. Deste quadro, podem eventualmente surgirem dúvidas
sobre a aplicabilidade de determinada regra a determinado caso, em determinado
tempo e espaço. Portanto, há que se estabelecer um método de interpretação
da lei, de maneira geral e principalmente da norma constitucional. Este método
denomina-se Hermenêutica Constitucional.
Neste ponto, asseveramos que toda nossa posterior abordagem a respeito do tema
em comento seja entendida como serva dos conceitos supra mencionados, uma vez
que como Bobbio1 na Itália; Karl Schmidt e seu discípulo Friedrich Müller na
Alemanha, Ronald Dworkin em Oxford, Kennedy Dukan em Harvard e o insuperável
Paulo Bonavides2 no nosso País, entendemos que a Escola Principiológica do
Direito Constitucional tem como nascedouro a crença na efetividade normativa
dos princípios gerais de direito3 e a legitimidade da força coercitiva do
ordenamento jurídico à adequação a esta trave mestra.
Apenas a título de singela exemplificação, devemos salientar que o Pretório
Excelso em reiteradas oportunidades tem se manifestado no reconhecimento da
efetividade normativa dos princípios gerais de direito, sendo célebre o voto
exarado pelo Ministro Celso de Mello, quando do julgamento do Mandado de Segurança
n.º 21.564-DF , de competência do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal.
Ao analisar o mérito do referido mandamus, o Ilustre Ministro lastreou sua
decisão, claramente, na eficácia normativa dos princípios gerais de direito,
especialmente o princípio republicano, que encerra a responsabilidade dos
detentores do poder. Dessa forma, restou afastada a pretensão do impetrante de
restrição à taxatividade contida na Lei n.º 1.079/50, dos ilícitos políticos-administrativos
imputáveis ao Presidente da República. Confira-se a lição do Ministro, in
verbis: "A descrição do legislador ordinário, neste tema, sempre
pautou-se - tanto quanto hoje - pelas exigências mínimas de observância dos
princípios gerais fixados, em texto meramente exemplificativo, pela Lei
Fundamental da República. Nessa matéria, mostra-se essencial que os
comportamentos legalmente qualificados como crimes de responsabilidade traduzam,
sempre, atos de violação da Constituição ou dos princípios que ela
adota.".
Este caso é, nada mais nada menos, do que um dentre outros submetidos à
apreciação da nossa mais alta Corte, quando da declaração de impedimento do
então Presidente da República Sr. Fernando Collor de Melo. (Publicado na íntegra
in "Impeachment", edição do Supremo Tribunal Federal, Brasília,
1996, pp. 104/198).
Por outro lado, forçoso concluir que paralelamente aos princípios gerais do
direito coexistem outros princípios específicos adotados pela nossa Constituição
Federal, como por exemplo os princípios constitucionais do Estado democrático
de direito, da separação dos poderes, da inafastabilidade da jurisdição, do
devido processo legal e do juiz natural, dentre outros previstos no rol do
artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.
Nesta esteira de raciocínio, importante lição se colhe do ensinamento do
Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, a cerca da efetividade normativa dos
princípios de direito: "Princípio é, por definição, mandamento nuclear
de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia
sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para
sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá
sentido harmônico. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma
norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma
de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio
violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de
seus valores fundamentais, contumácia irremissível a seu arcabouço lógico e
corrosão de sua estrutura mestra". (grifos nossos)
Neste contexto, a fim de comprovarmos o quão foram arrepiados os princípios
gerais de direito com a positivação de nossa atual Lei de Arbitragem, cumpre
primeiramente analisar-se a natureza jurídica da arbitragem pois, como se é
sabido, determinar-se a natureza jurídica de um instituto é estabelecer-se seu
ser jurídico, ou seja, sua "vida" ou "morte" frente ao
mundo do Direito.
3. A natureza jurídica da Arbitragem e às insuperáveis afrontas à Lex
Superior
Segundo se extraem dos artigos 18 e 31 da Lei da Arbitragem, os árbitros são
considerados juizes de fato e de direito, sendo que suas decisões não precisam
ser homologadas pelo Poder Judiciário, produzindo entre as partes e seus
sucessores os mesmos efeitos da sentença proferida pelo judiciário e, sendo
condenatórias, constituem título executivo, com aptidão para produzir a coisa
julgada.
Desta forma, cremos ser a arbitragem uma atividade instituída pelas manifestações
de vontade das partes, ou seja, uma atividade contratual privada que a lei
erigiu à categoria de fato jurídico para o fim de atribuir-lhe efeitos
jurisdicionais, sobretudo o da coisa julgada, que é uma característica
essencialmente jurisdicional. Tal como posta em nosso ordenamento jurídico, não
há dúvidas ser a arbitragem atividade jurisdicional desenvolvida por agentes
privados.
Diante disso, salta aos olhos a primeira afronta intransponível à nossa Carta
Magna, uma vez que é certo que ao Poder Judiciário, órgão de soberania
nacional, cabe especialmente a função precípua de aplicação do direito aos
casos concretos que lhe foram submetidos – função jurisdicional – que foi
confiada pela Constituição Federal aos juizes e tribunais nela expressamente
especificados.
Isto porque, constituindo-se a República Federativa do Brasil em um Estado
Democrático de Direito, sabemos nós, que todos os cidadãos brasileiros devem
submeter-se ao império da lei, mas "pode entretanto, suceder que o fato
seja contestável, a lei obscura; que pessoas ligadas por certa situação jurídica
discordem quanto à existência ou de seus efeitos. Até mesmo que, por malícia,
alguém se recuse a satisfazer um compromisso. Surgem então conflitos,
perturba-se a ordem jurídica, os fatos aberram da normalidade, a lei é
desobedecida, há um direito que encontra obstáculos em sua realização"
(Lopes da Costa, direito processual civil brasileiro, v. I, p. 50 e seg.)
Ocorrendo tais situações, cabe ressaltar que houve tempos que ao próprio
titular ficava entregue a missão de realizar seu direito. Todavia, já se vão
longe os tempos da justiça privada, pois no Estado de Direito civilizado, para
o bem da própria ordem, bem como para que a justiça não fosse jamais um
instrumento de dominação do mais forte, o Estado trouxe para si a
responsabilidade e o dever de sua aplicação, monopolizando-a.
"A jurisdição (jurisdictio, jus dicere) pode, – observou, com lucidez
inexcedível, o mestre lusitano J.J. Gomes Canotilho, in direito constitucional
e teoria da constituição, editora Almedina, 1997, pág. 577 – ser
qualificada como a actividade exercida por juízes e destinada à revelação,
extrinsecação e aplicação do direito num caso concreto. Esta actividade não
pode caracterizar-se tendo em conta apenas critérios materiais ou substantivos.
Está organizatoriamente associada ao poder jurisdicional, e é
subjectivo-organicamente atribuída a titulares dotados de determinadas características
(juízes). Está ainda jurídico-objetivamente regulada quanto ao modo de exercício
por regras e princípios processuais (processo)".
Desta feita, e como visto, por se tratar o Judiciário como manifestação de um
dos poderes – ou funções - do Estado, mister desde já ressaltar-mos que
nenhum princípio de nosso constitucionalismo excede em ancianidade e solidez o
princípio da separação dos poderes, consagrado no artigo 2º de nossa Lex
superior: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário"
No que tange à separação de poderes, salutar a lição de Salvatore Satta, in
manual de derecho procesal civil, v. I, Ediciones Juridicas Europa-america, pág.
7, in verbis: "En general, se dice que com la legislacíon el Estado provee
a la posición de las normas jurídicas, generales y abstractas; com la
administración provee, a través de los órganos apropiados, a los concretos
intereses públicos que normativamente le están confiados; com la jurisdicción
a la actuación del derecho en el caso concreto, entendiéndose esta fórmula,
según el ángulo visual, ya como actuación del derecho objetivo, ya como
actuación del derecho garantido por la norma. Esta división tripartita tiene
un valor puramente formal, o sea en el sentido de una división de poderes,
procurándose poner en evidencia el principio de la libertad por el cual el
Estado legislador, el Estado administrador, el Estado juez, obran cada uno en la
esfera de funciones que les es propia, con absoluta autonomía"
Portanto, depreende-se sem maiores dificuldades que o Poder Judiciário é
"separado" dos demais poderes do Estado, o que faz com que do ponto de
vista jurídico-constitucional tenha o mesmo, posição jurídica idêntica à
dos outros órgãos constitucionais de soberania (Executivo e Legislativo).
Disso resulta a exigência da separação e exclusividade da função de julgar
por parte dos órgãos judiciais previstos expressamente na Constituição
Federal como integrantes deste poder do Estado.
Isto porque, fazendo referência ao princípio do juízo legal, temos que os órgãos
judiciários são exclusivamente aqueles previstos pela Constituição Federal,
da onde resulta o entendimento de que é vedado ao legislador - assim como
ocorreu com a edição da lei de arbitragem - criar órgãos, atribuindo-os de
funções jurisdicionais diferentes dos estabelecidos por nossa Carta Magna.
Ademais, é preciso ser considerado que o regime jurídico dos magistrados que
integram o Poder Judiciário é o previsto também pela Constituição. Assim,
forçoso concluir que fundamentalmente, o objetivo do princípio do juízo legal
é garantir a imparcialidade e independência do Poder Judiciário, bem como dos
magistrados que o compõem, em benefício dos usuários dos serviços do próprio
Judiciário. Afinal, ninguém pode ser julgado senão pelos órgãos previstos
na Constituição e com as garantias que lhes são inerentes.
Desta feita, às autoridades julgadoras é vedado o direito de disporem
arbitrariamente da vida, da liberdade e da propriedade das pessoas, isto é, sem
razões materialmente fundadas na "Lex Superior" para o fazerem.
Radica aqui, portanto, um dos argumentos invocados para defender que é dever do
Estado – e não de um outro particular tal como previsto na lei de arbitragem,
diga-se de passagem - o de resolver os conflitos de interesses dos particulares
através de um de seus poderes, qual seja, o Poder Judiciário que é composto
por juizes de direito, admitidos sob a forma de concurso público de provas e títulos,
os quais, baseados na lei, nos princípios gerais do direito e constitucionais
de justiça, podem e devem analisar e interpretar a lei, aplicando-a ao caso em
concreto.
Aliás, é exatamente este o indiscutível conceito de jurisdição o qual, sem
necessidade de se recorrer mais uma vez da literatura estrangeira, é
apresentado pelos doutrinadores da terra como sendo: "Uma das funções do
Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em
conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os
envolve, com justiça" (Antonio C. Cintra, Ada Grinover, Cândido
Dinamarco, teoria geral do processo, Malheiros Editores, 10ª edição, pág.
125). Portanto, é dever do Estado, sob pena de denegação da justiça,
garantir a todos os cidadãos, conforme dispõe nossa Lei Maior, criar órgãos
judiciários e disciplinar os processos e procedimentos adequados para a
garantia de direitos, como forma de assegurar uma verdadeira e justa prestação
jurisdicional.
Nesta esteira de raciocínio, não há como deixar de transcrever a brilhante lição
de J. J. Gomes Canotilho a respeito do assunto: "Desta imbricação entre
direito de acesso aos tribunais e direitos fundamentais resultam dimensões
inelimináveis do núcleo essencial da garantia institucional da via judiciária.
A garantia institucional conexiona-se com o dever de uma garantia jurisdicional
de justiça a cargo do Estado. Este deve resultar não apenas do texto da
constituição, mas também de um princípio geral (‘de direito’, das ‘nações
civilizadas’) que impõe um dever de proteção através dos tribunais como um
corolário lógico: (1) do monopólio de coacção física legítima por parte
do Estado; (2) do dever de manutenção da paz jurídica num determinado território;
(3) da proibição de autodefesa a não ser em circunstâncias excepcionais
definidas na Constituição e na lei" (ob. citada, pág. 452)
Sendo a jurisdição manifestação da soberania, portanto, monopólio do Estado
por excelência, é lógico que o reconhecimento da arbitragem como atividade
jurisdicional está em contradição com este monopólio; afinal, com a nova lei
da arbitragem pretende-se, nada mais nada menos do que a privatização da justiça,
trazendo a tona uma inconcebível e atentatória forma de exercício da jurisdição
por agentes privados, resultando daí a sua flagrante inconstitucionalidade, por
violação do princípio do Estado democrático de direito, consagrado no artigo
1º de nossa Constituição e regra mestra de nosso sistema jurídico: "A
República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: (...)" (Art. 1º, CF/88).
Ainda a respeito do monopólio estatal da jurisdição, encontramos a lição
esposada por Ada P. Grinover, Antonio C. Cintra e Cândido Dinamarco, na obra
"Teoria Geral do Processo", 10ª edição, Malheiros Editores: "O
Estado moderno repudia as bases da filosofia liberal e pretende ser, embora sem
atitudes paternalistas, ‘a providência do seu povo’, no sentido de assumir
para si certas funções essenciais ligadas à vida e desenvolvimento da nação
e dos indivíduos que a compõem. Mesmo na ultrapassada filosofia política do
Estado liberal, extremamente restritiva quanto às funções do Estado, a
jurisdição esteve sempre incluída como responsabilidade estatal, uma vez que
a eliminação de conflitos concorre, e muito, para a preservação e
fortalecimento dos valores humanos da personalidade" (pág. 37)
Destarte, ressaltamos ainda que a lei de arbitragem implica a instituição de
uma instância jurisdicional fora das previstas na Constituição, o que faz
exsurgir mais uma inconstitucionalidade face à flagrante violação do princípio
da proibição do juízo ou tribunal de exceção, previsto no artigo 5º,
inciso XXXVII da Constituição, o qual prevê que "não haverá juízo ou
tribunal de exceção ".
Ademais, e como se não bastasse, mister considerar que tal como posta no
ordenamento jurídico, a lei de arbitragem viola ainda expressamente outros
princípios e garantias fundamentais previstos em nossa Carta Magna.
Isto porque, ao tratar da convenção de arbitragem distinguiu a atual lei que
disciplina o assunto (Lei 9307/96) a cláusula compromissória – prevista no
artigo 4º - do compromisso arbitral – este previsto no artigo 9º. Assim,
segundo mencionados artigos: "A cláusula compromissória é a convenção
através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à
arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato
" (Art. 4º) - "O compromisso arbitral é a convenção através da
qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas,
podendo ser judicial ou extrajudicial" (art. 9º)
No entanto, tal como prescrevem os artigos 6º e 7º da lei 9.307/96, a atual
lei de arbitragem trouxe uma alteração radical na legislação anterior, qual
seja, a possibilidade de conversão, por sentença judiciária, da cláusula
arbitral em compromisso arbitral. O que equivale a dizer que caso um determinado
contrato contenha a cláusula compromissória, qualquer litígio, questão ou dúvida
que disser respeito ao mesmo só poderá ser dirimida pela forma do compromisso
arbitral nele assumido.
Assim, da forma como disciplinado pela lei de arbitragem, prevista a cláusula
compromissória num determinado contrato, em ocorrendo qualquer controvérsia a
respeito do teor do mesmo, as partes não poderiam recorrer-se do Poder Judiciário
para solucioná-la, mas sim teriam que se sujeitar à decisão a ser proferida
pelo árbitro escolhido para solucionar o compromisso arbitral então surgido,
sob pena, nos termos do artigo 6º e 7º, uma sentença judiciária converter
aquela cláusula compromissória num compromisso arbitral, cuja decisão,
segundo dispõem os artigos 18 e 31 da referida lei, produziria entre as partes
e seus sucessores os mesmos efeitos da sentença proferida pelo judiciário e o
que é pior, sendo condenatória, constituiria título executivo com aptidão
para produzir a coisa julgada.
Ocorre que, como concretização do supra mencionado princípio estruturante do
Estado Democrático de Direito, nossa Constituição consagra ainda em seu
artigo 5º dois outros princípios de salutar importância, quais sejam o princípio
do devido processo legal e o da inafastabilidade da jurisdição.
Primeiramente, cumpre-nos salientar que o princípio da inafastabilidade da
jurisdição constitui garantia fundamental reconhecida em todo o mundo desde a
Revolução Francesa de 1789 até a Declaração da ONU de 1946; e, como
sabemos, o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, assegura a todos a
garantia fundamental de acesso ao Judiciário para pedir-lhe a tutela
jurisdicional contra lesão ou ameaça de lesão a direitos, in verbis: "A
lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito".
Da mesma forma, como consectário de tal princípio, nossa Carta Magna também
assegura a obrigatoriedade da observância de um tipo de processo legalmente
previsto para que alguém possa ser privado de sua vida, liberdade ou patrimônio,
consagrando assim o princípio do devido processo legal, in verbis: "Ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"
(Art. 5º, inc. LIV, CF/88) - "Aos litigantes, em processo judicial ou
admininstrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório a
ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes" (Art. 5º, inc. LV,
CF/88)
Desta feita, não apenas a título de elucidação, mas tendo por fim comprovar
a força e efetividade normativa de tal princípio, salientamos que a doutrina
costuma apontar como origem de sua positivação, a Carta Magna de João Sem
Terra, datada de 1215, nos termos da qual: "Nenhum homem livre será detido
ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei ou
exilado, ou de qualquer modo molestado e nós não procederemos ou mandaremos
proceder contra ele, senão mediante um julgamento regular pelos seus pares e de
harmonia com a lei do país"
Nestes termos, como garantia fundamental dos direitos dos cidadãos, tais princípios,
desde há muito inseridos em nossa Constituição, constituem uma imposição
diretamente dirigida ao legislador no sentido de que qualquer alteração no
direito positivo deve resguardar conformidade com os mesmos princípios, para o
fim de fazer-se valer e dar-se operatividade prática à defesa de tais
garantias fundamentais do cidadão.
Todavia, assim não ocorreu com a reforma legislativa que trouxe a lume a atual
lei de arbitragem, que através dos artigos 4º, 6º, 7º e todos os demais
decorrentes, pretendeu afastar o direito constitucionalmente assegurado aos
cidadãos de acesso ao judiciário sempre que estes sofrerem ameaça ou lesão a
direito.
Assim, face a adequada exegese dos princípios da inafastabilidade da jurisdição
e do devido processo legal, forçoso reconhecer ser impossível juridicamente a
renúncia ao exercício do direito fundamental de acesso ao Judiciário, ou
seja, ao direito de ação, razão pela qual deve ser rechaçada a inserção,
em todo e qualquer tipo de contrato da inconstitucional cláusula compromissória,
prevista no artigo 4º da atual lei de arbitragem.
Neste sentido, as seguras lições do Douto Professor das Faculdades de Coimbra
e de Lisboa, J. J. Gomes Canotiho, nos ensinam que: "pela própria
arqueologia do due process verifica-se que este se concebia fundamentalmente
como um direito de defesa do particular perante os poderes públicos. Quando os
textos constitucionais, internacionais e legislativos reconhecem, hoje, um
direito de acesso aos tribunais este direito concebe-se como uma dupla dimensão:
(1) um direito de defesa ante os tribunais e contra actos dos poderes públicos;
(2) um direito de proteção do particular através de tribunais do Estado no
sentido de este o proteger perante a violação de seus direitos por terceiro
(dever de proteção do Estado e direito do particular a exigir essa proteção).
A intervenção do Estado para defender os direitos dos particulares perante
outros particulares torna claro que o particular só pode, em geral, ver
dirimidos os seus litígios perante outros indivíduos através de órgãos
jurisdicionais do Estado. Esta ‘dependência’ do direito a protecção
juridicial de prestações do Estado (criação de tribunais, processos
jurisdicionais) justifica a afirmação corrente de que o conteúdo essencial do
direito de acesso aos tribunais é a garantia da via judiciária (=
"garantia da via judicial", "garantia da proteção
judicial", "garantia da protecção jurídica através dos
tribunais" (ob. citada, pág. 451 e seg.) (sublinhamos).
Portanto, muito embora possa-se afirmar ser o legislador o destinatário final
do princípio da inafastabilidade da jurisdição, tal comando constitucional
atinge a todos indistintamente, vale dizer, não pode o legislador e ninguém
mais impedir que o jurisdicionado, tendo sua esfera subjetiva de direitos
violada, renuncie ao seu direito de ação e não vá a juízo deduzir sua legítima
pretensão, pois, repita-se à saciedade, é assegurado a todos o acesso à
justiça para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória
relativamente a um direito - seja ele de que espécie for, individual, disponível
ou indisponível, difuso ou coletivo.
4. A declaração incidenter tantum da inconstitucionalidade da Lei
Ademais disso, como princípio e garantia fundamental assegurado a todos os
cidadãos que o é, mister salientar que, como dito anteriormente, o direito de
ação ou de acesso ao judiciário, por ser indisponível, não pode ser objeto
de renúncia por qualquer das partes, razão pela qual, nesta mesma linha de
raciocínio, cabe-nos considerar que muito embora o Excelso Supremo Tribunal
Federal ainda não tenha se manifestado, pela via concentrada de controle da
constitucionalidade, acerca da atual lei de arbitragem, o Eminente Ministro Sepúlveda
Pertence, ao relatar o Agravo Regimental em Sentença Estrangeira n.º 5206-7, não
perdeu a oportunidade de declarar incidenter tantum a inconstitucionalidade de
alguns artigos da atual lei de arbitragem, fundamentando sua decisão exatamente
no fato da irrenunciabilidade do direito fundamental de acesso ao judiciário;
referido voto, devido sua clareza e precisão, merece ser ora transcrito:
"Mas, a renunciabilidade da ação – porque direito de caráter
instrumental – não existe in abstracto: só se pode aferi-lo em concreto,
pois tem por pressuposto e é coextensivo, em cada caso da disponibilidade do
direito questionado, ou melhor, das pretensões materiais contrapostas, que
substantivam a lide confiada pelas partes à decisão arbitral.
Segue-se que a manifestação de vontade da qual decorra instituição do juízo
arbitral – onde exista a garantia constitucional da universalidade da jurisdição
judicial e, pois, do direito de ação – não pode anteceder à efetiva
atualidade da controvérsia a cujo deslinde pelo Poder Judiciário o acordo
implica renunciar. Vale dizer, que não prescinde da concreta determinação de
um litígio atual (...)
Por isso mesmo é que a doutrina firmada antes da lei de arbitragem repeliu,
quase à unanimidade, a possibilidade da execução judicial específica da cláusula
compromissória, como demonstrado, de modo definitivo, por José Carlos Barbosa
Moreira (ob. loc. cits.) (...)
Penso, entretanto, que, no ordenamento brasileiro, há obstáculo intransponível,
no ponto, à aplicação da lei nova.
Viu-se, com efeito, que o empecilho à incidência, na hipótese, da regra geral
do art. 639 do C. Pr. Civ., é a impossibilidade, nos termos do dispositivo, de
o juiz substituir pela própria a vontade da parte recalcitrante, ‘regulando
matéria estranha ao conteúdo do negócio preliminar’ – qual é, em relação
à cláusula compromissória, a determinação da lide a ser submetida à
arbitragem.
Ora, essa impossibilidade não a pode suprir a lei ordinária, sem ferir a
garantia constitucional de que ‘ a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito’ (CF, art. 5ª, XXXV) (...)
Na cláusula compromissória, entretanto, o objeto dessa opção, posto que
consensual, não são lides já determinadas e concretizadas, como se dá no
compromisso: serão lides futuras e eventuais, de contornos indefinidos; quando
muito, na expressão de Carnelutti (ob. Cit. ,p. 550), lides determináveis pela
referência ao contrato de cuja execução possam vir a surgir.
A renúncia, com força de definitiva, que ai se divisasse à via judicial já não
se legitimaria por derivação da disponibilidade do objeto do litígio, que
pressupõe a sua determinação, mas, ao contrário, consubstanciaria renúncia
genérica, de objeto indefinido, à garantia constitucional de acesso à jurisdição,
cuja validade os princípios repelem.
Sendo a vontade da parte, manifestada na cláusula compromissória, insuficiente
– dada a indeterminação do seu objeto – e, pois, diversa da necessária a
compor o consenso exigido à formação do compromisso, permitir o suprimento
judicial seria admitir a instituição de um juízo arbitral com dispensa da
vontade bilateral dos litigantes, que, só ela, lhe pode emprestar legitimidade
constitucional: entendo nesse sentido a lição de Pontes (ob. cit. ,XV/224) de
que fere o princípio invocado – hoje, art. 5º, XXXV, da Constituição –
atribuir, ao compromisso que assim se formasse por provimento judicial
substitutivo do assentimento de uma das partes, ‘ eficácia fora do que é a
vontade dos figurantes em se submeterem.
Não posso fugir, desse modo, à declaração da inconstitucionalidade do parágrafo
único do art. 6º e do art. 7º da lei de arbitragem e, em conseqüência, dos
outros dispositivos que delas derivam, isto é, no art. 41, da nova redação
dada aos arts. 267, VII, e 301, XI, do C. Pr. Civil (que estendem a qualquer
modalidade de convenção de arbitragem – e, pois, a hipótese de simples cláusula
compromissória – a força impeditiva da constituição ou da continuidade do
processo judicial sobre a mesma lide objeto do acordo arbitral), o art., 42, que
acrescenta um novo inciso, n. VI ao art. 520 C. Pr. Civil para incluir no rol
dos casos de apelação com efeito só devolutivo, o da interposta contra a
sentença ‘que julgar procedente o pedido de instituição da arbitragem.’
". (grifamos e sublinhamos)
Portanto, concluímos que a decisão acima transcrita, extraída do voto do
Eminente Ministro Sepúlveda Pertence está a reforçar a tese aqui assumida de
que é inconstitucional a inserção de cláusula compromissória nos contratos,
tendo-se em vista ser esta cláusula considerada uma renúncia genérica ao
direito de ação que, dada sua natureza jurídica de direito indisponível, é
absolutamente irrenunciável.
A fim de colocar-se verdadeira pá de cal a respeito da adequada interpretação
e aplicação dos princípios e garantias fundamentais do cidadão no Estado
Democrático de Direito, previstos em nossa "Lex Superior"– tais
quais os princípios do juízo legal, da inafastabilidade da jurisdição e do
devido processo legal -, não poderíamos deixar de nos referir à brilhante lição
esposada pelo mestre Paulo Bonavides, in verbis:
"Os direitos fundamentais são a bússola das Constituições. A pior das
inconstitucionalidades não deriva, porém, da inconstitucionalidade formal, mas
da inconstitucionalidade material, deveras contumaz nos países em
desenvolvimento ou subdesenvolvidos, onde as estruturas constitucionais,
habitualmente instáveis e movediças, são vulneráveis aos reflexos que os
fatores econômicos, políticos e financeiros sobre elas projetam. O Estado
padece com relação ao controle desses fatores um déficit de soberania, tanto
interna como externa, perdendo assim, em elevado grau, a sua capacidade
regulativa. Isto, que já ocorria desde muito com patente força, aumentou de
intensidade a partir da globalização e do neoliberalismo. Tanto na doutrina
como na praxis política, as formas liberais e globais não só a desarmam, senão
que enfraquecem o Estado, obrigando-o a evacuar o espaço de fomento e proteção
de direitos fundamentais... .Tudo por obra dos sobreditos fenômenos –
globalização e neoliberalismo -, derivados do sistema capitalista em sua fase
mais recente de expansão. Fase, sem dúvida, sombria para o futuro dos direitos
fundamentais, mormente tocante ao capítulo se sua interpretação nos países
de periferia desse sistema. Cabe, por conseguinte, reiterar: quem governa com
grandes omissões constitucionais de natureza material menospreza os direitos
fundamentais e os interpreta a favor dos fortes contra os fracos. Governa,
assim, fora da legítima ordem econômica, social e cultural e se arreda da
tridimensionalidade emancipativa contida nos direitos fundamentais da segunda,
terceira e quarta gerações " (curso de direito constitucional, 8ª edição,
Malheiros Editores, pág. 583 e seg.)
5. Reflexão: Das inovações trazidas ao risco do "Darwinismo
Social"
Sob a ótica do aqui exposto, não podemos deixar de concluir que parece ser
exasperador a muitos "espertos" – assim nos referimos àqueles que
desrespeitando direitos e garantias fundamentais dos cidadãos encontram
obscuras maneiras para sobrepor os seus próprios interesses -, o gravame na
Constituição Federal do nosso País de dispositivos claramente propícios ao
desenvolvimento de uma sociedade que encarne o Estado democrático de direito,
principalmente os enumerados no art. 5º, e de maneira particular necessário
repisar aqui os princípios da inafastabilidade da jurisdição e a
imprescindibilidade do devido processo legal.
Estes, especialmente hoje, favorecidos com o discurso monolítico de favorecer o
que é mais moderno, o menos retrógrado, não se dão conta do risco, hoje mais
que nunca presente, de estarem facilitando o crescimento da cultura de maior
adaptabilidade ao mais forte.
Paladinos modernos do "darwinismo social", se alguma classificação
lhes devesse ser dada em função das idéias que pregam, sem se aperceberem,
espera-se - no sentido de lhes conceder um tempo para que um dia em breve se
convençam do pernicioso que praticam - propõem, travestidas de modernidade, o
que Herbert Spencer teve coragem de estender aos homens aquilo que Darwin
descobrira como importante fator seletivo entre os organismos de modo geral: a
sobrevivência dos mais aptos, dos mais fortes. De modo que, no mundo
competitivo que apregoam como necessário hoje, aquela sociedade que estiver
mais organizada em favor dos interesses dos mais fortes, dos mais espertos terá
vantagens, enquanto os pobres, os miseráveis, de preferencia devem sucumbir,
pois sua incapacidade em competir, provada pela miserabilidade em que vivem, os
coloca como fardo indesejável para os "mais evoluídos".
Incapazes de entenderem a sociedade humana como algo que deve ser construído a
partir da evolução que já ocorreu; não entendem o homem como é proposto,
por exemplo, além de muitos outros autores, pelo emérito professor Goffredo
Telles Júnior, em "Ética - Do mundo da célula ao mundo da cultura",
1988, Editora Forense. Afinal, o ilustre jurista explica como as moléculas
presentes nos seres vivos se agrupam, se organizam até ao homem como é visto
hoje, com potencial de evolução para chegar ao estágio de todos iguais, todos
produtos do mesmo tronco evolutivo, e portanto todos irmãos, de modo que
"não seria de surpreender que, em meio do deslumbramento que nos ilumina,
nossos lábios se ponham a murmurar ... ‘Pai nosso que estás nos céus’...".
No lugar disso aquelas pessoas - os espertos a que nos referimos - querem
pronunciar apenas aquilo que a sabedoria popular já conhece bem, ou seja, o
"venha a nós o vosso reino e seja feita a minha vontade"; descrença
com os que devem decidir, com os que devem assumir responsabilidade social.
Nestas duas situações acima, o Direito, como bem explica o Professor Goffredo
Telles, quando fala da primeira, repita-se, o Direito tem toda a razão de ser,
é fundamental. Estará exercendo a sua essência: Justiça, igualdade. Parece
que na segunda, na do "venha a nós o vosso reino e seja feita a minha
vontade" estará legitimando aquilo que os animais inferiores já o fazem
seguindo seus instintos primários. O Direito estaria sendo descartado, bem como
toda a evolução de milhares de anos da espécie humana.
Lamentável que em situação de litígio, em circunstâncias adversas, uma das
partes, inferiorizada, tenha que se submeter aos ditames de lei que,
eventualmente, possa servir a tais propósitos de exclusão, pois ancorada em
base "anti-ética" – para se dizer o mínimo -, a negação da Ciência
do Direito.
Portanto, seja do ponto de vista filosófico, metafísico ou mesmo científico,
travestida de modernidade, a lei em comento nos reduz aos primórdios da
civilização humana ou mesmo "quase humana", posto que ao positivar
um sentimento ou uma intenção de imposição da consagração legal do
"darwinismo social" faz tábula rasa de todo o processo civilizatório
que culminou com o moderno Estado Democrático de Direito, empreendendo-se o
caminho do retorno à lei dos mais fortes, ou mesmo, a uma lei para os mais
fortes, e pior, muito pior, um Poder Judiciário para os mais fortes.
E não seria por este caminho que se explicaria que a Lei n.º 9307/96, ao
estabelecer a possibilidade da arbitragem, apesar de não ser feita no ambiente
e por profissional do Direito, ter sua decisão produzindo os mesmos efeitos
como se no interior do Direito houvesse sido tomada?
Embora não se quede aqui a explicitar supostas segundas intenções de
terceiros pretende-se, com o acima exposto, praticar a sábia recomendação de
Kant quando diz em seu "Projeto de Paz Perpétua": "Uma intenção
que não pode ser divulgada e só pode ser concretizada de maneira encoberta
ameaça de injustiça a coletividade e os indivíduos".
Consoante isto e diferentemente do que se pode interpretar das idéias dos que
se colocam como mais modernos, como vistas acima, quiseram nossos Constituintes,
garantir direitos indistintamente a todos, explicitando princípios, mormente,
preocuparam-se em garantir ao Estado o arcabouço jurídico para tal fim necessário.
Pode-se dizer que estiveram particularmente preocupados em possibilitar na prática
do Estado o que o notável jurista italiano Mauro Cappelletti, professor por
muitos anos na Universidade Stanford (EUA) e autor de importantes trabalhos de
direito comparado, como "O Controle Judicial de Constitucionalidade das
Leis no Direito Comparado" e "Acesso à Justiça", diz com
sabedoria: "Sob a ponte da Justiça passam todas as dores, todas as misérias,
todas as aberrações, todas as opiniões políticas, todos os interesses
sociais. Justiça é compreensão, isto é, tomar em conjunto e adaptar os
interesses opostos: a sociedade de hoje e a esperança do amanhã".
E, embora seja consenso a necessidade de reformas no Judiciário, o que se
pretende com elas é justamente aperfeiçoar os pontos onde justamente as práticas
do Judiciário, além de outros, em prioridade não permitem o acesso por igual
de todos à Justiça, como também, vale lembrar, dadas as circunstâncias
presentes no caso atual, dever-se-á excluir o formalismo excessivo que acarreta
prejuízo para a essência do Direito.
No entanto, cremos nós, tais mudanças necessárias certamente serão no
sentido de aumentar a credibilidade do sistema jurídico e dos princípios
constitucionais e gerais do Direito, base do Estado Democrático de Direito, e
excluído o "facilitatório" – pois, o "mais fácil" é a
pretensão que está presente na lei 9307/96 que trata da Arbitragem – que,
travestida de "modernismo", legalize o poder do mais forte, o exercício
da antítese da Ciência do Direito, ou pior, a introdução no arcabouço jurídico
de uma Nação de um Poder Judiciário de "primeira classe", "célere",
"sofisticado", técnico" para legitimar negócios ou solucionar
controvérsias entre empresas ou grupos de empresas a latere do poder estatal,
este, no entender dos "modernos", irrecuperável como instrumento de
adequação da resolução das lides neste mundo globalizado.
Parece-nos que tal quadro é a realidade concreta proposta pela nova lei de
arbitragem, qual seja, a criação de um Poder Judiciário privado, ou mesmo, um
Estado apropriado privatisticamente dentro do Estado. Aos demais co-cidadãos,
fica a prestação jurisdicional tradicional, "lenta", "difícil",
"inadequada" e ineficaz" aos reclamos dos autos negócios
globalizados. Seria cômico se não fosse trágico o fato de que esta usurpação
de poder se faz às escancaras e com o beneplácito de parte de consciência jurídica
nacional. É com tristeza que constatamos a inércia de parte do Poder Judiciário
nacional na defesa de suas próprias prerrogativas, não como serviço público,
mas como poder de Estado, o qual o Judiciário o é, ou pelo menos, ainda o é.
No mais, é melancólica a constatação de que no crepúsculo deste nosso
combalido século, se constate a materialização do pesadelo Orweliniano
proposto por esta nova lei, ou seja, todos são iguais perante a lei, porém
alguns mais iguais que os outros são.
Notas:
Norberto Bobbio, em sua basilar obra, Teoria do Ordenamento Jurídico - ed.
Polis c/ ed. Universidade de Brasília, 1991 - basicamente no Capítulo nomeado
"Unidade do Ordenamento Jurídico" (págs. 37 a 65) traça em linhas
gerais a hierarquia das normas, para culminar a pirâmide com os princípios
gerais e normas constitucionais, aduzindo, in verbis: "A norma fundamental
é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico. Sem uma
norma fundamental, as normas de que falamos até agora constituiriam um
amontoado, não um ordenamento. Em outras palavras, por mais numerosas que sejam
as fontes do direito num ordenamento complexo, tal ordenamento constitui uma
unidade pelo fato de que, direta ou indiretamente, com voltas mais ou menos
tortuosas, todas as fontes do direito podem ser remontadas a uma única norma.
Devido à presença, num ordenamento jurídico, de normas inferiores e
superiores, ele tem uma estrutura hierárquica. As normas de um ordenamento são
dispostas em ordem hierárquica". (ob. cit. pág. 49)
2. Conforme bem observa o ilustre constitucionalista do Ceará, Dr. Paulo
Bonavides, Professor das Faculdades de Colônia/Alemanha, Tenessee/EUA e
Coimbra/Portugal, em sua obra Curso de Direito Constitucional, no Capítulo
referente aos "Princípios Gerais de Direito" ao comentar a obra de
Pergolesi, encerrando a questão, que: "Pergolesi disse que, do seu ponto
de vista, os princípios podem considerar-se normas eles mesmos, nomeadamente se
codificados; hoje, com mais razão - acrescentamos nós - se
constitucionalizados, ou seja, se inseridos nas Cartas Constitucionais".
(ob. cit. pg. 247). E assim conclui o ilustre constitucionalista, agora
abeberando-se do magistério de Gordillo, a saber: "Diremos então que os
princípios de Direito Público contidos na Constituição são normas jurídicas;
mas não só isso, enquanto a norma é um marco dentro no qual existe uma certa
liberdade, o princípio tem substância integral. (...). A norma é limite, o
princípio é limite e conteúdo (...). O princípio estabelece uma direção
estimativa, em sentido axiológico, de valoração, de espírito (...). O princípio
exige que tanto a lei como o ato administrativo lhe respeitem os limites e que
além do mais tenham o seu mesmo conteúdo, sigam a mesma direção, realizem o
seu mesmo espírito" (ob. cit., págs. . 258/259)
3. Alguns desses princípios gerais do direito se encontram expressos já no Preâmbulo
da Constituição Federal, in verbis: "Nós, representantes do povo
brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL."
6. Bibliografia
1. Bobbio, Norberto, Teoria do Ordenamento Jurídico, ed. Polis c/ ed.
Universidade de Brasília, 1991;
2. Bonavides, Paulo, Curso de Direito Constitucional, Malheiros Editores, 8ª
edição;
3. Canotilho, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
Editora Almedina, 1997;
4. Cintra, C. Antônio; Grinover, Ada; Dinamarco, Cândido, Teoria Geral do
Processo, Malheiros Editores, 10ª edição;
5. Mello, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, Malheiros
Editora, 10ª edição;
6. Satta, Salvatore, Manual de Derecho Procesal Civil, volume I, Ediciones
Juridicas Europa-america;
JOÃO ROBERTO EGYDIO PIZA FONTES é Ex-Presidente da O.A.B/SP, Ex-Conselheiro
Federal da O.A.B. e advogado em São Paulo
FÁBIO DA COSTA AZEVEDO é advogado em São Paulo
Retirado
de: http://www.travelnet.com.br/juridica
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